Bailarina, coreógrafa, psicóloga, atriz e arte-educadora, Claudia é daquelas pessoas que fazem tudo com emoção e paixão. A loucura foi o seu caminho para a lucidez, onde ela entendeu que é preciso resgatar o afeto, o olho no olho, e entender e aceitar as diferenças de cada um como algo a ser celebrado. Afinal, é o que nos faz humanos.

Seu trabalho com o Grupo Orgone se funde com o do Projeto TAMTAM, criado por Renato Di Renzo para promover saúde mental, educação, acesso à cultura, diversidade e inclusão social. A ONG Associação Projeto TAMTAM é um exemplo reconhecido nacional e internacionalmente e oferece atividades gratuitas e inclusivas, como Teatro e Expressão, Dança, Ballet Clássico, Jazz, Expressão Corporal, Grupo Lúdico Pedagógico, Musicalização, Literatura e Poesia para pessoas de todas as idades, com ou sem deficiência.

Revista Studiobox – Você sempre teve essa ligação com a arte? Como isso surgiu na sua vida?

Claudia Alonso – A arte enquanto dança entrou na minha vida por meio do balé clássico, que eu fazia como um tratamento de correção postural, por indicação médica, porque eu tinha uma perna mais comprida do que a outra.
Eu me apaixonei pela dança, mas sofri bastante com isso no começo, ficava sempre no canto do canto do palco. Comecei no balé clássico, e nunca tive o “padrão de bailarina. Sempre fui grandona, com coxa e bumbum grandes… Mas, sempre amei dançar.

Por que você escolheu a Psicologia como formação acadêmica?

Eu sempre gostei de gente, entende? Sou literalmente humana, gosto de afetividade, de abraço, de olhar e ouvir. Só uma profissão ligada às pessoas poderia me fazer bem. E já que eu acreditava que não poderia sobreviver só com a dança, a Psicologia se apresentou para mim de forma clara e decisiva. Fiz e amei!

Esse seu lado afetivo é um diferencial importante…

Eu herdei isso da minha família, principalmente da minha mãe e da minha avó materna. Às vezes, eu até brinco que queria não ter herdado tanto essa característica, porque no mundo de hoje é difícil não ter medo de acolher, ajudar…
Mas a nossa família sempre foi assim: grande, afetiva, festiva! Minha criação foi assim e eu sempre conduzi meu trabalho dessa forma.
As pessoas precisam se falar mais, estar mais juntas, ser mais compartilhadoras, afetivas e presentes. A atual condição do ser humano nos deixou apáticos e distanciados uns dos outros.

E como foi a integração do que você já fazia na dança, que você já ensinava na época, com a nova carreira na Psicologia?

Eu já tinha a minha escola e o grupo de dança Orgone. Posso sizer que além da técnica aprendida e da minha formação, eu sempre tive algo bastante afetivo no meu trabalho de ensinar e construir coreografias.
Isso já era uma constante no meu trabalho, e na faculdade conheci a Teoria Orgônica, de Wilhelm Reich, que fala da potência de vida, da energia vital.

O que tem tudo a ver com o seu grupo de dança.

Sim! O grupo já tinha sido batizado de Orgone por uma aluna minha, que dizia que era um Deus que passava energia boa para as pessoas. Eu achei a palavra horrível, mas o significado era bacana e ficou. Daí na faculdade eu entendi melhor o que significava e percebi o quanto esse nome era forte, mas eu ainda não sabia exatamente como agir, nessa época.

O que mudou?

A revolução aconteceu depois que eu me formei na faculdade, quando conheci o Dr. David Capistrano, que era Secretário de Saúde de Santos, na época.
Ele foi responsável por falar de mim e da minha dança para o Renato Di Renzo, que fazia parte da equipe de humanização da Casa de Saúde Anchieta, depois da intervenção pública que aconteceu em 1989.

Logo depois vocês começaram a trabalhar juntos no Anchieta, após a intervenção que completa 30 anos agora, como foi esse processo?

O Di Renzo já tinha deixado o hospício com “cara de arte”. Entrei lá esperando encontrar paredes cinzas e “gente babando”, mas o que eu vi foram paredes cheias de painéis pintados e gente fazendo teatro, pinturas, esculturas. Gente feliz, entende?
Na minha cabeça era uma grande loucura, porque eu não sabia direito quem era paciente e quem era técnico, todos compartilhavam do mesmo espaço!
A cena para mim era linda, nova, revolucionária, tudo de bom! Foi um aprendizado muito grande, foi quando eu tirei a sapatilha e coloquei o pé no chão.

Foi uma daquelas experiências que mudam a vida?

Quando conheci pessoalmente o Di Renzo achei ele uma pessoa linda, um mestre, um gênio. Totalmente apaixonado por aquelas pessoas. Ele disse que queria a minha dança e ponto. E, assim, essa coexistência da dança e da psicologia se deu de forma quase natural e fluída. Aconteceu onde tinha que ser, naquele “hospício” que vinha ganhando cor, outro pulso, outra vida, outras histórias…
Isso está em mim até hoje, todos os dias. Essa foi e ainda é a melhor, mais rica e mais humana vivência da minha vida.

Foi dessa experiência que surgiu o Projeto TamTam?

O Tamtam é uma revolução na história da saúde mental e da luta antimanicomial dentro de um mundo altamente excludente.
Se isso ainda é assim hoje, imagina lá nos anos 90, um cara como o Di Renzo propondo que todos convivam, respeitando diferenças e talentos? É por isso que o Tamtam virou referência no Brasil e no mundo com um trabalho contínuo há 30 anos.

E como foi que o Café Rolidei entrou nessa história?

O Espaço Sócio-Cultural e Educativo Café Teatro é um renascimento do antigo Zazar’h Bar, que na década de 90 funcionou no mesmo lugar, com os egressos do Anchieta e alguns jovens em situação de risco e vunerabilidade social dos abrigos da Cidade.
O Renato levava a turma para lá, e aconteciam apresentações musicais e artísticas, de teatro… E os usuários do local que cuidavam do espaço.
Em 2003 nós retornamos ao espaço, agora como ONG, atendendo a beneficiários gratuitamente com diversas atividades.

Com tudo isso, você acredita que mais ensina ou aprende?

É tudo muito intrinsecamente ligado, uma via de duas mãos a cada minuto. É entrega de verdade, respeito sem dó, cooperação, compartilhamento. Sem dúvidas, eu sou uma pessoa melhor devido a esse trajeto e a todas essas vivências.

Por que é importante dar voz a quem é excluído pela sociedade?

É algo vital, fundamental, urgente e necessário. Se você parar para pensar, o mundo está solitário, indiferente, sem afeto… As pessoas não sabem mais ouvir, não sabem mais dizer “eu te amo”.
Há uma doença contemporânea que está quase instalada: uma ditadura de corpo, de imagem, de como devemos nos portar. E há uma violência que vai além da física. É uma doença emocional, que gera a violência em que estamos “enroscados”.
Por tudo isso, a voz e a escuta hoje em dia são vitais. Precisamos urgentemente nos resgatar. Resgatar a infância perdida, o amor fraternal, as individualidades, o indivíduo e a sua propriocepção, para que o cooperativo impere e esteja presente no nosso dia a dia. Isso tudo é muito profundo, sério e necessário.

Qual o papel exercido pela arte e pelo empoderamento do corpo nesse processo de resgate?

Pense como seria se você não tivesse o controle da sua vontade de fazer xixi, por exemplo. Pense em como seria ter fome e não conseguir deglutir a comida, se a água não te hidratasse. Já pensou como seria se o seu pensamento não tivesse o controle da sua racionalidade?
Se somente os impulsos e movimentos involuntários funcionassem no seu corpo?
Não perceber o próprio corpo e a sua ação, seu tempo e necessidades seria cruel se fosse assim.
A arte, os movimentos artísticos e a sua sensível relação conosco nos permitem a apuração proprioceptiva de nós mesmos.

E como isso se aplica no nosso dia a dia?

Com isso, a gente se entende enquanto cidadão, entende o nosso papel no mundo e no meio em que vivemos! Assim, a participação crítica, a construção individual e coletiva, ficam fortes e constroem vínculos e relações com base e estrutura fortes.
É dessa forma que são criados os laços de afeto, empoderamento, pertencimento, com respeito à inclusão e à diversidade.

O que significa ser diferente na sociedade de hoje?

Ser diferente deveria simplesmente ser… oras! Se somos cada qual um, somos por si só diferentes. Esta “simplicidade” no entedimento das diferenças deveria fazer parte do nosso dia a dia.
Antigamente, no tempo dos meus avós, as pessoas ficavam batendo papo na rua, sentavam na praça, compravam pão na padaria e sabiam o nome do padeiro, do carteiro… Elas se conheciam. E as diferenças eram bem vindas e celebradas!

Esse entendimento tornava a vida mais fácil?

As pessoas sabiam chorar na frente das outras, e o melhor: sabiam dar o ombro para o choro alheio e celebrar juntos as alegrias e conquistas!
Uns eram mais tímidos, outros exageradamente comunicativos, e essas diferenças se somavam bem. Era tão bom…
Tenho uma certa inveja de não ter vivido isso tão intensamente quanto eu podia na época, mas o fato de ter a minha família sempre tão plural e diversa, tão afetiva, me faz cultivar, plantar e amar cada pessoa com quem eu convivo e compartilho a vida a cada segundo.

Definitivamente é algo que precisamos na atual conjuntura.

Isso é fundamental para que as diferenças não se tornem crime, culpa, medo ou vergonha. É tudo isso que faz de nosso mundo atual tão frágil e cada vez mais violento.

Por isso é tão importante garantir o direito de ser diferente?

Justamente. É ele que garante nossa identidade, individualidade e também a felicidade.
As diferenças são muito importantes e bem vindas na sociedade. Elas têm o poder de tirar a gente do comodismo, dos comportamentos padronizados, das ditaduras comportamentais e físicas. Resumindo, elas garantem nosso jeito de ser quem somos.

Como é possível ajudar, acolher e dar espaço para as pessoas que não encontram essa garantia por causa das diferenças?

O possível está em nós! Somos os agentes do mundo. E o mundo só pode estar bem e feliz, se entender as diferenças e aceitá-las.
Porém, entender as diferenças dá trabalho, e acaba sendo mais “fácil” e mais cômodo desvalorizar o diferente e minorizar as potências diferentes. Você exclui o outro para ficar no seu “lugar comum”, mascara as relações e finge que está tudo bem.

Não tem como dar certo, né? Quais são as consequências desse comportamento?

É daí que vem a solidão, a depressão, o pânico e todas essas doenças relacionadas ao afeto, que estão despontando de forma violenta e veloz na sociedade.
Não é uma questão de ser uma pessoa com deficiência ou ter alguma síndrome, é uma questão de humanidade. De afeto. De ser gente. De sensibilidade.

Você acredita que esse papel é de todos na sociedade?

Com certeza. Nós precisamos – todos – nos resgatar, nos humanizar. A gente precisa aprender novamente a olhar um para o outro, se abraçar e se escutar.
Não podemos achar que brigas, porradas, silêncio, pânico e solidão são coisas comuns.
Temos que entender que o amor faz bem, que ser carinhoso faz bem. Não podemos ter medo ou vergonha de sermos “bobos”. É isso que é legal: ser doce!
Isso é saúde mental. É o ser humano completo. Isso somos nós!

* Fotos: Tyaro Studio